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Carlos Pena Filho

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A palavra As dádivas do amante
A solidão e seu desgaste A solidão e sua porta
Desmantelo azul Para fazer um soneto
Retrato do pintor Reinaldo Fonseca Soneto superficial como Madame
Soneto da busca Soneto ao recanto
Soneto das definições Soneto das metamorfoses
Soneto para Greta Garbo
                         
                      

A palavra

 

Navegador de bruma e de incerteza,

Humilde me convoco e visto audácia

E te procuro em mares de silêncio

Onde, precisa e límpida, resides.

 

Frágil, sempre me perco, pois retenho

Em minhas mãos desconcertados rumos

E vagos instrumentos de procura

Que, de longínquos, pouco me auxiliam.

 

Por ver que és claridade e superfície,

Desprendo-me do ouro do meu sangue

E da ferrugem simples dos meus ossos,

E te aguardo com loucos estandartes

Coloridos por festas e batalhas.

 

Aí, reúno a argúcia dos meus dedos

E a precisão astuta dos meus olhos

E fabrico estas rosas de alumínio

Que, por serem metal, negam-se flores

Mas, por não serem rosas, são mais belas

Por conta do artifício que as inventa.

 

Às vezes permaneces insolúvel

Além da chuva que reveste o tempo

E que alimenta o musgo das paredes

Onde, serena e lúcida, te inscreves.

 

Inútil procurar-te neste instante,

Pois muito mais que um peixe és arredia

Em cardumes escapas pelos dedos

Deixando apenas uma promessa leve

De que a manhã não tarda e que na vida

Vale mais o sabor de reconquista.

 

Então, te vejo como sempre foste,

Além de peixe e mais que saltimbanco,

Forma imprecisa que ninguém distingue

Mas que a tudo resiste e se apresenta

Tanto mais pura quanto mais esquiva.

 

De longe, olho teu sonho inusitado

E dividido em faces, mais te cerco

E se não te domino então contemplo

Teus pés de visgo, tua vogal de espuma,

E sei que és mais que astúcia e movimento,

Aérea estátua de silêncio e bruma

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As dádivas do amantes

 

Deu-lhe a mais limpa manhã

Que o tempo ousara inventar.

Deu-lhe até a palavra lã,

E mais não podia dar.

 

Deu-lhe o azul que o céu possuía

Deu-lhe o verde da ramagem,

Deu-lhe o sol do meio dia

E uma colina selvagem.

 

Deu-lhe a lembrança passada

E a que ainda estava por vir,

Deu-lhe a bruma dissipada

Que conseguira reunir.

 

Deu-lhe o exato momento

Em que uma rosa floriu

Nascida do próprio vento;

Ela ainda mais exigiu.

 

Deu-lhe uns restos de luar

E um amanhecer violento

Que ardia dentro do mar.

 

Deu-lhe o frio esquecimento

E mais não podia dar.

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A solidão e o seu desgaste

 

Freqüentador da solidão, às vezes

Jogava ao ar um desespero ou outro,

Mas guardava os menores objetos

Onde a vida morava e o amor nascia.

 

Era uma carga enorme e sem sentido,

Um silêncio magoado e impermeável...

A solidão povoada de instrumentos,

Roubando espaço à andeja liberdade.

 

Mas, hoje, é outro que nem lembra aquele

Passeia pelos campos e os despreza

E porque sabe com certeza clara,

 

O princípio e o fim da coisa amada,

Guarda pouco da vida e o que retém

É só pelo impossível de eximir-se.

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A solidão e sua porta

 

Quando mais nada resistir que valha

A pena de viver e a dor de amar

E quando nada mais interessar

(Nem o torpor do sono que se espalha)

 

Quando pelo desuso da navalha

A barba livremente caminhar

E até Deus em silêncio se afastar

Deixando-te sozinho na batalha

 

A arquitetar na sombra a despedida

Deste mundo que te foi contraditório

Lembra-te que afinal te resta a vida
 

Com tudo que é insolvente e provisório

E de que ainda tens uma saída

Entrar no acaso e amar o transitório.

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Desmantelo azul
 

Então pintei de azul os meus sapatos

Por não poder de azul pintar as ruas

Depois vesti meus gestos insensatos

E colori as minhas mãos e as tuas

 

Para extinguir de nós o azul ausente

E aprisionar o azul nas coisas gratas

Enfim, nós derramamos simplesmente

Azul sobre os vestidos e as gravatas

 

E afogados em nós nem nos lembramos

Que no excesso que havia em nosso espaço

Pudesse haver de azul também cansaço

 

E perdidos no azul nos contemplamos

E vimos que entre nascia um sul

Vertiginosamente azul: azul.

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Para fazer um soneto
 

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,

E espere um instante ocasional

Neste curto intervalo Deus prepara

E lhe oferta a palavra inicial

 

Ai, adote uma atitude avara

Se você preferir a cor local

Não use mais que o sol da sua cara

E um pedaço de fundo de quintal

 

Se não procure o cinza e esta vagueza

Das lembranças da infância, e não se apresse

Antes, deixe levá-lo a correnteza

 

Mas ao chegar ao ponto em que se tece

Dentro da escuridão a vã certeza

Ponha tudo de lado e então comece.

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Retrato do pintor Reinaldo Fonseca
 

Mas tanta cor não cabe neste espaço

e arrebenta os limites que a circundam

as meninas de luto que aqui dormem

dentro do próprio sono se equilibram

 

Em tuas mão manchadas de ternura,

pousam brancos pássaros. por isso

falas atrás da sombra, e à luz mais forte

ruminas teu silêncio inquebrantável

 

Se o que possui o céu de puro e simples

algum dia cair sobre o teus ombros

imperturbável, pintarás um anjo

 

E nunca mais palavras além da sombra

que o que restar de ti será somente

o profundo silêncio inquebrantável

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Soneto supeficial com Madame
 

Madame, em vosso claro olhar, e leve,

navegam coloridas geografias,

azul de litoral, paredes frias,

vontade de fazer o que não deve

 

ser feito, por ser coisa de outros dias

vivida num instante muito breve,

quando extraímos sal, areia e neve

de vossas mãos, singularmente esguias.

 

Que eternos somos, dúvida não tenho,

nem posso abandonar minha planície

sem saber se em vós há o que em vós venho

 

buscar. E embora em nós tudo nos chame,

jamais navegarei a superfície

de vosso claro e leve olhar, Madame.

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Soneto da busca
 

Eu quase te busquei entre os bambus

para o encontro campestre de janeiro

porém, arisca que és, logo supus

que há muito já compunhas fevereiro.

 

Dispersei-me na curva como a luz

do sol que agora estanca-se no outeiro

e assim também, meu sonho se reduz

de encontro ao obstáculo primeiro.

 

Avançada no tempo, te perdeste

sobre o verde capim, atrás do arbusto

que nasceu para esconder de mim teu busto.

 

Avançada no tempo, te esqueceste

como esqueço o caminho onde não vou

e a face que na rua não passou.

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Soneto ao recanto
 

Num recanto sem data e sem ternura,

E mais, sem pretensão a ser recanto,

Descobri em teu corpo o amargo canto

De que despenca para a desventura.

 

Há nos recantos sempre uma segura

Desvantagem de unir o desencanto

E é por isso talvez que não me espanto

De ali perder teu corpo e a ventura.

 

De viver entre atento e descuidado,

Mirando o pardo tédio que descansa

Nos subúrbios do amor desmantelado.

 

E só para ganhar mais espessura

Eu resolvi fazer esta lembrança

De um recanto sem data e sem ternura.

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Soneto das definições
 

Não falarei de coisas, mas de inventos

e de pacientes buscas no esquisito.

Em breve, chegarei à cor do grito,

à música das cores e do vento.

 

Multiplicar-me-ei em mil cinzentos

(desta maneira, lúcido, me evito)

e a estes pés cansados de granito

saberei transformar em cataventos.

 

Daí, o meu desprezo a jogos claros

e nunca comparados ou medidos

como estes meus, ilógicos, mas raros.

 

Daí também, a enorme divergência

entre os dias e os jogos, divertidos

e feitos de beleza e improcedência.

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Soneto das metamorfoses
 

Carolina, a cansada, fez-se espera

e nunca se entregou ao mar antigo.

Não por temor ao mar, mas ao perigo

de com ela incendiar-se a primavera.

 

Carolina, a cansada que então era,

despiu, humildemente, as vestes pretas

e incendiou navios e corvetas

já cansada, por fim, de tanta espera.

 

E cinza fez-se. E teve o corpo implume

escandalosamente penetrado

de imprevistos azuis e claro lume.

 

Foi quando se lembrou de ser esquife:

abandonou seu corpo incendiado

e adormeceu nas brumas do Recife.

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Soneto para Greta Garbo
 

Entre silêncio e sombra se devora

e em longínquas lembranças se consome

tão longe que esqueceu o próprio nome

e talvez já não sabe por que chora

 

Perdido o encanto de esperar agora

o antigo deslumbrar que já não cabe

transforma-se em silêncio por que sabe

que o silêncio se oculta e se evapora

 

Esquiva e só como convém a um dia

despregado do tempo, esconde a tua face

que já foi sol e agora é cinza fria

 

Mas vê nascer da sombra outra alegria

como se o olhar magoado contemplasse

o mundo em que viveu, mas que não via.

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Material recolhido em:

Carlos Pena Filho

Livro Geral - Poemas

Organização e seleção de textos de Tânia Carneiro Leão 

Recife - 1999

 

® Romero Tavares da Silva