Carlos Pena Filho |
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Navegador de bruma e de
incerteza,
Humilde me convoco e
visto audácia
E te procuro em mares
de silêncio
Onde, precisa e
límpida, resides.
Frágil, sempre me perco, pois retenho Em minhas mãos desconcertados rumos E vagos instrumentos de procura Que, de longínquos, pouco me auxiliam. Por ver que és claridade e superfície, Desprendo-me do ouro do meu sangue E da ferrugem simples dos meus ossos, E te aguardo com loucos estandartes Coloridos por festas e batalhas. Aí, reúno a argúcia dos meus dedos E a precisão astuta dos meus olhos E fabrico estas rosas de alumínio Que, por serem metal, negam-se flores Mas, por não serem rosas, são mais belas Por conta do artifício que as inventa. Às vezes permaneces insolúvel Além da chuva que reveste o tempo E que alimenta o musgo das paredes Onde, serena e lúcida, te inscreves. Inútil procurar-te neste instante, Pois muito mais que um peixe és arredia Em cardumes escapas pelos dedos Deixando apenas uma promessa leve De que a manhã não tarda e que na vida Vale mais o sabor de reconquista. Então, te vejo como sempre foste, Além de peixe e mais que saltimbanco, Forma imprecisa que ninguém distingue Mas que a tudo resiste e se apresenta Tanto mais pura quanto mais esquiva. De longe, olho teu sonho inusitado E dividido em faces, mais te cerco E se não te domino então contemplo Teus pés de visgo, tua vogal de espuma, E sei que és mais que astúcia e movimento, Aérea estátua de silêncio e bruma |
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Deu-lhe a mais limpa manhã
Que o tempo ousara inventar. Deu-lhe até a palavra lã, E mais não podia dar.
Deu-lhe o azul que o céu possuía Deu-lhe o verde da ramagem, Deu-lhe o sol do meio dia E uma colina selvagem.
Deu-lhe a lembrança passada E a que ainda estava por vir, Deu-lhe a bruma dissipada Que conseguira reunir.
Deu-lhe o exato momento Em que uma rosa floriu Nascida do próprio vento; Ela ainda mais exigiu.
Deu-lhe uns restos de luar E um amanhecer violento Que ardia dentro do mar.
Deu-lhe o frio esquecimento E mais não podia dar. |
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Freqüentador da solidão, às vezes Jogava ao ar um desespero ou outro, Mas guardava os menores objetos Onde a vida morava e o amor nascia.
Era uma carga enorme e sem sentido, Um silêncio magoado e impermeável... A solidão povoada de instrumentos, Roubando espaço à andeja liberdade.
Mas, hoje, é outro que nem lembra aquele Passeia pelos campos e os despreza E porque sabe com certeza clara,
O princípio e o fim da coisa amada, Guarda pouco da vida e o que retém É só pelo impossível de eximir-se. |
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Quando mais nada resistir que valha A pena de viver e a dor de amar E quando nada mais interessar (Nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha A barba livremente caminhar E até Deus em silêncio se afastar Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida Deste mundo que te foi contraditório
Com tudo que é insolvente e provisório E de que ainda tens uma saída Entrar no acaso e amar o transitório. |
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Desmantelo azul | ||
Então pintei de azul os meus sapatos Por não poder de azul pintar as ruas Depois vesti meus gestos insensatos E colori as minhas mãos e as tuas
Para extinguir de nós o azul ausente E aprisionar o azul nas coisas gratas Enfim, nós derramamos simplesmente Azul sobre os vestidos e as gravatas
E afogados em nós nem nos lembramos Que no excesso que havia em nosso espaço Pudesse haver de azul também cansaço
E perdidos no azul nos contemplamos E vimos que entre nascia um sul Vertiginosamente azul: azul. |
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Para fazer um soneto | ||
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara, E espere um instante ocasional Neste curto intervalo Deus prepara E lhe oferta a palavra inicial
Ai, adote uma atitude avara Se você preferir a cor local Não use mais que o sol da sua cara E um pedaço de fundo de quintal
Se não procure o cinza e esta vagueza Das lembranças da infância, e não se apresse Antes, deixe levá-lo a correnteza
Mas ao chegar ao ponto em que se tece Dentro da escuridão a vã certeza Ponha tudo de lado e então comece. |
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Retrato do pintor Reinaldo Fonseca | ||
Mas tanta cor não cabe neste espaço e arrebenta os limites que a circundam as meninas de luto que aqui dormem dentro do próprio sono se equilibram
Em tuas mão manchadas de ternura, pousam brancos pássaros. por isso falas atrás da sombra, e à luz mais forte ruminas teu silêncio inquebrantável
Se o que possui o céu de puro e simples algum dia cair sobre o teus ombros imperturbável, pintarás um anjo
E nunca mais palavras além da sombra que o que restar de ti será somente o profundo silêncio inquebrantável |
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Soneto supeficial com Madame | ||
Madame, em vosso claro olhar, e leve, navegam coloridas geografias, azul de litoral, paredes frias, vontade de fazer o que não deve
ser feito, por ser coisa de outros dias vivida num instante muito breve, quando extraímos sal, areia e neve de vossas mãos, singularmente esguias.
Que eternos somos, dúvida não tenho, nem posso abandonar minha planície sem saber se em vós há o que em vós venho
buscar. E embora em nós tudo nos chame, jamais navegarei a superfície de vosso claro e leve olhar, Madame. |
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Soneto da busca | ||
Eu quase te busquei entre os bambus para o encontro campestre de janeiro porém, arisca que és, logo supus que há muito já compunhas fevereiro.
Dispersei-me na curva como a luz do sol que agora estanca-se no outeiro e assim também, meu sonho se reduz de encontro ao obstáculo primeiro.
Avançada no tempo, te perdeste
que nasceu para esconder de mim teu busto.
Avançada no tempo, te esqueceste como esqueço o caminho onde não vou e a face que na rua não passou. |
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Soneto ao recanto | ||
Num recanto sem data e sem ternura, E mais, sem pretensão a ser recanto, Descobri em teu corpo o amargo canto De que despenca para a desventura.
Há nos recantos sempre uma segura Desvantagem de unir o desencanto E é por isso talvez que não me espanto De ali perder teu corpo e a ventura.
De viver entre atento e descuidado, Mirando o pardo tédio que descansa Nos subúrbios do amor desmantelado.
E só para ganhar mais espessura Eu resolvi fazer esta lembrança De um recanto sem data e sem ternura. |
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Soneto das definições | ||
Não falarei de coisas, mas de inventos e de pacientes buscas no esquisito. Em breve, chegarei à cor do grito, à música das cores e do vento.
Multiplicar-me-ei em mil cinzentos (desta maneira, lúcido, me evito) e a estes pés cansados de granito saberei transformar em cataventos.
Daí, o meu desprezo a jogos claros e nunca comparados ou medidos como estes meus, ilógicos, mas raros.
Daí também, a enorme divergência entre os dias e os jogos, divertidos e feitos de beleza e improcedência. |
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Soneto das metamorfoses | ||
Carolina, a cansada, fez-se espera e nunca se entregou ao mar antigo. Não por temor ao mar, mas ao perigo de com ela incendiar-se a primavera.
Carolina, a cansada que então era, despiu, humildemente, as vestes pretas e incendiou navios e corvetas já cansada, por fim, de tanta espera.
E cinza fez-se. E teve o corpo implume escandalosamente penetrado de imprevistos azuis e claro lume.
Foi quando se lembrou de ser esquife: abandonou seu corpo incendiado e adormeceu nas brumas do Recife. |
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Soneto para Greta Garbo | ||
Entre silêncio e sombra se devora e em longínquas lembranças se consome tão longe que esqueceu o próprio nome e talvez já não sabe por que chora
Perdido o encanto de esperar agora o antigo deslumbrar que já não cabe transforma-se em silêncio por que sabe que o silêncio se oculta e se evapora
Esquiva e só como convém a um dia despregado do tempo, esconde a tua face que já foi sol e agora é cinza fria
Mas vê nascer da sombra outra alegria como se o olhar magoado contemplasse o mundo em que viveu, mas que não via. |
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Material recolhido em: |
Carlos Pena Filho
Livro Geral - Poemas Organização e seleção de textos de Tânia Carneiro Leão Recife - 1999 |
® Romero Tavares da Silva